A música que nos devolve a humanidade (17/7/2012)
Por João Marcos Coelho
DER SPIEGEL –
Você se apresentou em Gaza no ano passado sem a West-Eastern Divan
Orchestra. Você levou músicos de três orquestras: de Berlim, a
Staatskapelle e a Filarmônica; e de Viena, a Filarmônica.
DANIEL BARENBOIM –
E recebi aquele que provavelmente é o mais belo cumprimento de minha
carreira musical. Um homem me agradeceu tão efusivamente e tantas vezes
por nossa performance que, a certa altura, tive de perguntar-lhe por que
estava tão feliz. Ele me respondeu: "Temos a sensação de que o mundo se
esqueceu de nós. Recebemos ajuda material, e somos gratos por isso. Mas
o fato de você ter vindo aqui com sua orquestra nos devolve a sensação
de que somos seres humanos”.
Todo mundo conhece Daniel
Barenboim, 69 anos, judeu nascido em Buenos Aires, criado a partir dos
10 anos em Israel e hoje radicado em Berlim, pianista e maestro,
ex-titular da Orquestra de Paris (1975-1989) e da Orquestra de Chicago
(1991-2006) e titular da Deutsche Staatsoper de Berlim (desde 1992) e da
Staatskapelle de Berlim (vitalício desde 2000). O que menos gente sabe é
que a pergunta que ele dirigiu ao palestino só poderia ter sido feita
após o encontro mágico com Edward Said.
Edward Said [foto: divulgação]
Topei
com esta magnífica resposta de Barenboim numa entrevista do final do
mês passado à revista semanal alemã. Não dá pra passar batido. Nela está
a resposta a uma das perguntas mais difíceis relacionadas à arte dos
sons. Para que serve? Tenho usado a expressão: ela nos torna mais
humanos, ou melhor, nos devolve a sensação de que somos humanos, como
diz acertadamente o palestino que assistiu ao concerto em Gaza.
Precisamos
ter consciência de que a música é, para nós, tão preciosa e fundamental
quanto para o palestino, que vive um dia-a-dia que ninguém inveja, na
conflituadíssima área de Gaza, onde falta de tudo – de água a teto, de
alimento a roupa – e sobram bombas, guerras e mortes.
Que bom que a
música não existe num vácuo, dizia Edward Said, uma das cabeças
pensantes mais brilhantes da passagem dos séculos 20/21, infelizmente
morto aos 68 anos, em 2003. A música, a cultura e a política devem ser
vistas como um todo. "O que é esse todo, tenho o prazer de dizer",
afirmava, "nenhum de nós sabe explicar completamente, mas pedimos aos
leitores, nossos amigos, que se juntem a nós para tentar descobrir".
Edward Said e Daniel Barenboim [foto: divulgação]
Palestino
nascido em Jerusalém, foi criado no Cairo mas era cidadão
norte-americano; foi crítico e professor de literatura na Universidade
de Columbia em Nova York, ex-assessor de Arafat na OLP e articulista do
jornal egípcio El-Ahram, e das revistas The Nation, London Review of
Books e New York Review of Books. Ah, também foi pianista e autor de
vários dos mais agudos ensaios sobre música do último meio século.
Mas,
e de novo recorro a Said, nem tudo são rosas, “a música requer um tipo
específico de educação que a maioria das pessoas simplesmente não recebe
(...) Gente que conhece bem pintura, fotografia, teatro, dança, etc.,
não tem tanta facilidade para falar de música. E, contudo, como diz
Nietzsche em
A Origem da Tragédia, a música é potencialmente a
forma de arte mais acessível, porque, com a junção do apolíneo e do
dionisíaco, causa uma impressão mais forte e envolvente que as outras
artes. E o paradoxo está em que, embora seja acessível, a música é
incompreensível”.
Paradoxo que se pode explicar assim: a música é
acessível porque produz um efeito imediato muito poderoso; mas, ao mesmo
tempo, é uma arte extremamente esotérica, pois requer treino e
disciplina muito parecidos com a de um jesuíta.
“O apartheid
envolvendo a música é coisa que me parece exclusiva da nossa época”,
adverte Said. “A música está perdendo a autoridade. Acho que o tipo de
reflexão que nos interessa tem menos probabilidade de ocorrer hoje, no
que se refere à música, do que cem anos atrás. Estou perplexo e
assustado com isso”.
Quanto a Barenboim, ele completa 70 anos em
novembro próximo e vive um momento especial: a arrogância diminui na
medida em que alcança a maturidade plena. Deve ter tudo a ver com a
convivência dele com Edward Said, um intelectual que fez da
inteligência, independência e sinceridade seus nortes na vida. Juntos,
eles fundaram a Orquestra West-Eastern Divan, unindo músicos do Oriente
Médio inteiro, de judeus a libaneses, sírios, sauditas, jordanenses,
entre outras etnias e nacionalidade.
Agora mesmo, neste mês,
Barenboim está lançando uma integral das nove sinfonias de Beethoven com
esta orquestra (enquanto a gravação não chega ao Brasil, é possível
ouvir trechos no
CD Beethoven for all).
Pode não ser a mais refinada nem a mais rebrilhante gravação do
monumento de Beethoven. Mas, com certeza, é a prova viva de que a música
modifica de fato as pessoas. E isso está acima de tudo.
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